"É trabalhoso desenhar o próprio caminho no mundo e se entender com a cadência, a intensidade, a espessura, dos próprios traços. Estar receptivo para se descobrir o que se quer desenhar e perceber, a cada trecho do desenho, o que a alma anseia e escolhe para o traço seguinte."

“Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.”
( in Sempre Palavra, 1985)

Eu entrei no meio de uma confusão. Andei por cima de folhas que pareciam dançarem como bailarinas enquanto caiam dos galhos, caiam tão ritmadas. Havia um aspecto um pouco alaranjado no céu, e aos poucos a tempestade parecia sumir, enquanto o frio parecia aumentar a cada instante. Mas eu não estava sentindo nada, não sentia a pele fria. Na verdade não estava sequer ligando para o final do dia.

Eu estava de frente para aqueles três homens enfurecidos. Mas ao fundo daquele fardo não sentia absolutamente nada. Meus olhos enxergavam em toda a extensão, e também com tamanha profundidade que eu jamais poderia explicar. Observei com os olhos pesados por vários minutos. Até esqueci o motivo que me levara a estar ali, ou o que me fazia praticamente estar naquela situação. Eu sabia que havia uma distância enorme entre o amor e ódio, mas também sentia na pele a diminuta diferença entre os limites de cada um. A raiva praticamente dominava, sentia a dor ensurdecer os batimentos do meu coração, como gritos silenciosos e que se alastravam em taquicardias inesperadas. Eu sabia que estava presa, e ao mesmo tempo havia uma liberdade que não poderia explicar. Os três estavam feridos, eu sabia que o coração sentira aquele golpe. Contudo, a minha fúria não sabia sentir pena, ao contrário, era tão fácil saborear aquele sofrimento, porque eu bem sabia quão merecidamente lhes era aqueles machucões. Tudo parecia se encaixar, e eu sabia que tinha de fazer. Eu precisava ajuda-lo, porque éramos parte um do outro.  

Os três estavam caídos no chão gelado, com as roupas sujas de lama e folhas secas, brigando como bichos, mostrando suas verdadeiras faces. Ao passo que brigavam, uma figura surgiu no meio de todos, e os separou. Pôs os braços entre eles e gritou enquanto lágrimas caiam. Não houve instante mais pesado, mais inseguro que aquele, mas aquela figura não pensou por um momento sequer que não tinha forças para faze-los parar. Porém sua força era de tamanha magnitude que na fraqueza se reerguia como rocha. Atirou cada um longe, arrancando um do outro. E todos caíram longe na lama. Foram pegos de surpresa.

Eu apenas observava tudo aquilo, e a minha mente compreendia exatamente o que fazer, o que dizer. Apenas observei aqueles olhos azuis arregalarem-se. Nos olhávamos como na primeira vez. Não era passível de entender como não havia um limite entre nossos olhares, nos confundíamos onde começava e onde terminavam os olhares. Por que não nos limitávamos àquela situação?

- Severina? – Murmurou a voz – És tu?
- “Será que sou eu? Ou sou uma extensão de mim?” – Pensei. – Não – Respondi.
- Severina? – Segurou com a mão esquerda no meu queixo enquanto tentava mover meu olhar pesado de volta para o dele.
Puxei o queixo comandando a situação. Não queria me prender novamente ao olhar.
- Severina, sou eu! Lauro! Espera um pouco, não se desfaça dos meus olhos assim tão rapidamente.

Tudo o que eu conseguia enxergar no meio de tudo aquilo era apenas um olhar conhecido, porém distante. Não queria me reconhecer naquilo. Meu olhar se transformou, como se tivessem pesos enormes que causavam dores enquanto se arrastavam na pele dele. Ele ficou paralisado. Senti uma emoção naquela dor progressiva que o causava. O Lauro ficou pálido, como se tivesse a mesma cor da minha blusa. E se afastou inquieto.

Naquele instante, o que havia de fúria foi desaparecendo lentamente. Substituindo por um atordoamento, confusão pessoal e uma tristeza incomum. A minha vulnerabilidade parecia ecoar pelos poros. E foi assim que os três me levaram ao chão novamente. Como tentativa de nos equiparamos no mesmo buraco, igualitários. Mas eles sabiam que isso era impossível, porque somos todos diferentes, e eu conseguiria me reerguer. 

Então o Lauro me olhou fixamente, com a dor atravessando até minha alma, e simplesmente foi embora. Como se não pudesse se permitir esperar por mim. Eu sabia que poderia ser nosso Adeus, ou um novo caminho. E quanto aos outros três, eu sabia que os reencontraria, mas ainda haviam caminhos tortuosos para cada um que nem poderíamos imaginar.

“Estive pensando nesse mistério que faz com que aquela vida que acaba de encontrar a nossa nos deixe com a impressão de estar no nosso caminho desde sempre, como se fosse um sol que esteve o tempo todo ali e a gente somente não o ouvia cantar. Nesse mistério que nos faz trocar buquês dos olhares mais cuidadosos. Que nos faz querer cultivar jardins, lado a lado. Nesse mistério que faz com que a nossa vida queira um bem tão grande à outra vida, que vai ver que isso já é uma prece e a gente nem desconfia”
(Ana Jácomo)


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