“Algumas vezes, um clichê é a melhor forma de se explicar um ponto de vista.”
"Precisa prestar atenção nos momentos importantes. Porque às vezes eles só aparecem uma vez."
Fugindo um pouco
daqueles pensamentos atordoados, ouvindo o barulho da água batendo contra o
casco do barco, pensei nas pessoas passadas, retrógradas a meu itinerário. Tudo
sempre limitado a um único e minúsculo eu. Após uma madrugada terrível ao som
do silêncio daquela mulher, na manhã o navio parou pela primeira vez. Era um
dia de pouco sol, diria que perfeito pra não sentir o calor daquela região.
Escapei dos olhares dela intrigados pelas perguntas da noite anterior.
Tangenciei em direção aos deques.
A primeira impressão é
de que eu jamais conseguiria passar pelos caras da madrugada anterior. Pra
minha sorte (ou não) ninguém estava lá. Então resolvi entrar pra descobrir o
mistério daquele lugar. Onde eu estava parecia uma espécie de central de
abastecimento, no entanto o mais intrigante é que estava vazio. Sorrateiramente
escapei do local e fui pra fora do navio. Os mesmos homens da noite anterior
estavam descarregando caixas grandes. Crime bem feito é aquele que é
imperceptível, e justamente quem acreditaria que ali estavam sendo descarregada
uma mercadoria que era relevante num plano arquitetado milimetricamente?
Eu já havia visto cenas
assim várias vezes na vida, mas nunca estive na cena necessariamente. Quando
passei com o corpo completamente endurecido perto da movimentação, observei a
presença de mais pessoas que não estavam no navio. Ao me aproximar foi possível
ver o que estava fazendo surgir tantas pessoas. Era um pedaço de alguma parte
do corpo de alguém. Parte essa articulada, porém por algum motivo aquilo
pareceu ser estranho de tamanha forma que causava arrepios ao notar que aquela
parte apontava para o corpo suspenso por uma rede de pescador. Uma tontura pairou sobre minha cabeça (nunca
tive estômago para essas situações). Fui aproximando lentamente, vi uma espécie
de objeto pontiagudo. Não podia ser. Recuei como defensiva. Quando dei por mim
estava no quarto.
Vozes ecoavam um pouco
distantes e eu só reconhecia o teto do pequeno quarto.
- E aí ele tá bem?
- Não sei. Tá
respirando.
- É melhor a gente
sair, qualquer coisa você avisa.
- Certo.
O quarto silenciou
novamente. E eu recobrando os pensamentos consegui sair daquele transe.
- O que foi que
aconteceu? – perguntei.
- Nada responde ou você
quer relembrar? – ela respondeu.
- Começa me dizendo se
eu sonhei ou foi verdade!
- Então, o problema é
que foi verdade. É pra falar a verdade?
- Quem era aquela
pessoa?
- Uma pergunta de cada
vez? – Deu um sorrisinho daquele manso que te invade a alma.
- Porque você tá me
olhando assim?
- Porque? Essa é uma
pergunta tão complicada. E o mais incrível é que você tem todas as
respostas. – Um silêncio surgiu. Mas
logo foi quebrado.
- No meio de tanta coisa
você precisa ver apenas o essencial e viver aquilo até o fim.
Eu compreendi o que ela
quis dizer com isso. No entanto isso não me acalmava. Suspirei em tom
angustiado.
- É ...
- Você entendeu.
- Acho que sim – Falei.
- Hum! – ela fez em tom
de interesse visual declarado. – Moço bonzinho, todo certinho, segue uma louca
desvairada e não consegue resistir, até que ponto essa auto biografia vai ser
assim?
Sabe quando todos os
trocadilhos emitidos por uma boca conseguem se transformar em flertes? Ela era
exatamente assim. Isso não é muito fácil de achar, não com essa habilidade misturada
com uma sutileza de sensualidade.
- Eu escrevo. Mesmo você
achando que dita as regras, quem decide o que coloca na história sou eu. –
Falei em tom sério.
- Tem toda razão. –Concordou
em tom irônico.
Notando que eu já
estava melhor, passou por mim e foi embora. E os momentos vividos naquelas
poucas horas pareciam se entrecortarem na minha cabeça. Só que ali estava eu,
preso em mais perguntas que antes. Será realmente que eu comandava? Ou será que
ela me comandava? Senti-me pela primeira vez rendido, com a força de apenas um
dedo, aquela mulher tinha um poder diferente de todas as outras.
“Precisar de dominar os
outros é precisar dos outros.”
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