"Vem, que eu te ensinarei a voar."


“Nós éramos sem começo, sem meio, sem fim, sem solução, sem motivo. (...) Era a vida se mostrando mais poderosa do que eu e minhas listas de certo e errado.


Dentro do quarto, dividindo aquele pequeno espaço; percebi que de fato, a viajem louca havia começado. Ambos preparávamo-nos para algo que não sabíamos. Eu estava ocupado repensando as prioridades do momento e as verdadeiras possibilidades, no entanto por algum estranhamento pessoal eu tinha uma única certeza, a de que eu estava preparado.

Na proa do navio que estávamos a bordo havia um senhor que tirava fotos. Ao olhar aquele rosto amargurado pelo tempo notei que havia alguém perdido no meio da cor preta e branca das fotos, e achei que poderia usar aquela arte pra guardar os momentos. Pedi pra que ele tirasse uma foto da Marry que prontamente lançou para a câmera aquele olhar profundo, diria que seria um olhar milimetricamente maldoso. Depois tirei uma com ela de olhar frontal em direção ao dela. Por fim tirei uma minha, frontalmente, o que me fez aparentar ter alguns anos a mais do que realmente eu tinha. E dessas três fotos fizemos cópias para guardar como recordação.

Uma foto por si só não mostra o conteúdo que é refletido, é sempre o exterior, a parte rotulável que fica expressada. Eu queria mais que isso, a queria conhecer mais intimamente, não apenas porque ela a minha inspiração, ou porque eu queria sentir as emoções a flor da pele, mas porque a simples visão daqueles olhos que me cortavam a alma, aquela boca que sabia sorrir de uma forma que me deixava desconfortável, isso tudo evocava partes sobre as quais eu não pensava ser possível de sentir. Ela não fazia parte de meus padrões, não tinha a intelectualidade como instrumento de me aprisionar, mas tinha um sarcasmo que me tirava do sério. Ela tinha apenas uma coisa em comum comigo, ela sentia fome das sensações, das cores, do mundo; de toda forma, isso naquele momento não importava, apenas a intensidade que se avolumava era realmente ofuscante diante de qualquer outro momento.

Embora eu soubesse que ela seria a minha perdição, eu ouvia a necessidade de sentir e sabia que meu querer corria léguas distante, acreditava de forma fervorosa que não seria um arrependimento viver por um objetivo palpável sem precisar tocar, afinal um momento se sente sem ser pelo tato. Eu só não imaginava que mais tarde seria abandonado como um objeto estragado, o que me prendia seria uma rejeição futura. O que iria me prender após isso? O que importava? Eu tinha meus 20 anos, era pouco, e eu sabia que podia recomeçar. Eu era expert nisso.

Mais adiante eu sabia que algo iria acontecer, haveria outras pessoas, outros momentos, haveria mais. Naquele navio, em algum momento, as coisas perderiam o controle, e eu seria mais um rejeitado, mas toda ação tem uma reação.

Foi uma viajem longa, e diria que ordinária em certos aspectos. Um calor escaldante, um trabalho exaustivo, mas era recompensado a noite pelas poucas horas ao lado daquela mulher, e na madrugada silenciosa nos braços dela eu não sabia que me tornava suspeito de uma das maiores organizações secretas.

Secretamente nesse navio era transportado dinamite, por tantos km de água percorridos, e pela distância daquela água silenciosa me tornava um criminoso as cegas e inocente. Por volta das três da manhã, depois de eu estar aparentemente dormindo, a Marry levanta cuidadosamente da cama e sai do quarto. A segui por pura curiosidade e satisfação de entender aquela mulher. Ela desceu até os deques escondida, e eu não acompanhei até o fim porque haviam uma espécie de controle feito por homens altos e de fisionomia assustadora.

O sol já estava nascendo, enquanto isso eu andava de um lado pra outro pensando, bebi duas doses duplas de whisky, e o navio já se aproximava da primeira parada. Porém, eu continuei lá, de pé, envolto nos meus pensamentos até que ela chegasse.

- Onde você estava? – perguntei.
- Hã? – ela respondeu como quem tenta fingir não ouvir.
- Onde você foi a madrugada toda? O que você estava fazendo?
- Ah, nada. Eu só tinha ido tomar um ar, nada demais. Não vai me dizer que você nunca sentiu vontade de esticar o corpo e pensar?
- Você tem certeza que não quer falar sobre isso?
- É isso mesmo? Você agora está questionando meus atos e palavras?
- Sim.
- Eu realmente não acredito no que eu estou ouvindo! Vamos fingir que isso não aconteceu!
- Fingir? Não. E aí? Porque não começa a falar quem eram aqueles caras! – falei em tom irritadiço.
- Você me seguiu? Já falei pra você que eu fui apenas tomar um ar. Acho bom você esquecer isso, quanto menos souber melhor pra você!
- Huum – murmurei.

Naquele momento ela apenas se deitou na cama e mais nenhuma palavra foi trocada. O silêncio perdurou por horas entre aquelas quatro paredes, aquela mulher e eu. E apesar disso, da desconfiança, dos olhares atravancados, o meu medo, nada me fazia querer sair daquela situação. O perigo era eminente e talvez nunca mais eu fosse visto ao fim daquela viajem. Felizmente, havia algo a mais. Talvez o ponto de partida fosse meu ponto de chegada, e era isso que eu iria descobrir. E nas fotos, em preto e branco, notei que as cores apenas estavam escondidas, assim como a real Marry.
 

“Mas nenhum desses silêncios chega perto
Do som que é viver ouvindo o mundo se locomovendo
(...)
Estar no centro do barulho nunca foi realmente uma solidão.

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