"Há um significado por detrás de cada pequeno ato. Talvez não possa ser visto com clareza imediatamente."
“Inquieta-me,
passar por você,
sem que eu não o olhe!
Meus olhos...
Foram feitos,
para ver o amor
em seu coração!”
passar por você,
sem que eu não o olhe!
Meus olhos...
Foram feitos,
para ver o amor
em seu coração!”
(Desconhecido)
Sabe
daqueles dias cansados e um pouco gastos? Foi mais ou menos assim para Rafaela.
Havia trabalhado por horas, mas parecia que os cadernos de contabilidade só
aumentavam em sua mesa. E quando a hora bateu na liberdade do final do
expediente, acomodou toda aquela papelada na bolsa, entrou no carro. Colocou a
bolsa no banco ao lado e começou a dirigir. Sentia-se muito confortável com
aquela sensação de satisfação da volta para casa.
A
Rafaela não tinha filhos, mas tinha a velha casa. Incompleta, meio bagunçada, e
solitária. A cozinha era pequena, apesar de poucas coisas, quase não havia
espaço entre o fogão e a parede que emendava uma espécie de cozinha americana.
Era uma casa toda pequena, quente, mas ainda assim era dela, ou resultado dos
esforços pessoais. Na pequena varanda, ela tinha algumas poucas plantas, que
ela cuidava diariamente. E conversava, regava com tanto amor que elas cresciam
tão belas, impregnadas de uma solidão bem recompensada. Rafa dava um pouco de
sua essência a tudo o que rodeava, e aos poucos construía a própria vida em
cima de muita força que ela nem percebia ter.
Ao
final do dia, já sem forças, parecia que era a hora em que as horas gargalhavam
em maestria daquela situação. Quando ela já aquietada, sem mais nada para fazer
além de fechar os olhos, o coração adoecia. No entanto sentia-se mais focada
nos objetivos. Tudo era traduzido em planos para o amanhã e mais outros 300
planos que não necessariamente precisariam sair do pensamento. Todas as
vontades incessantes criavam cores, vida, e pareciam recriar-se na desordem de
um pensamento inquieto. Ali, deitada, tudo era possível em menos de poucos
segundos já havia conquistado 3 mil reinos, e tinha as maiores ambições
satisfeitas.
No
fundo, tudo o que a Rafa realmente queria era a possibilidade de mudar sem
perder o equilíbrio. E parecia muito difícil de abdicar de uma realidade como
aquela, tão duramente conquistada. Não se sentia pronta para cair nesses
caminhos certos, sem que ela pudesse escolher qual caminho andar. Queria uma
vida dividida, filhos. Mas a própria juventude já lhe esvaia pelos dedos, e não
conseguia se ajustar aos velhos padrões que pareciam prisões escolhidas. Vivia assim, meio na dúvida entre a felicidade que presenciava, com uma
continuidade daquilo que acreditava ser o melhor caminho e o caminho dividido com alguém que lhe representava a tal estabilidade afetiva. Mas ela era completamente feliz,
insuportavelmente feliz, e todos percebiam. O que sentia transbordava de si. Ela conseguiu
criar a vida que escolhera para si, e conquistou a liberdade pelos próprios
méritos. Mas a solidão ainda assim era um tanto assustadora e aconchegante. Era o mundinho pessoal e intransferível que ela era dona de si.
A
maior preocupação da Rafa era essas horas antes do sono carrega-la aos braços
de Morfeu, quando parte daquilo que ela criara se esvaia. Quando percebia que
sua vida era totalmente perfeita, a casa arrumada, todos os trabalhos em dia, e
e-mails respondidos. Pela manhã era perceptível uma felicidade de quem busca
todos os sonhos do mundo. Ao final do dia, ela parecia se enxergar, e percebia
quais as próprias raízes que deixava no mundo. Estava bom assim, do jeito que
escolhera. Mas bem sabia, que precisava ser a escolhida para dividir os velhos
dias e conquistas.
O
carro mudava a direção, ora em vielas, ora em ruas largas. Mas sempre ao sol
findar, na volta para casa, o céu escurecido anunciava que faltavam poucas
horas para a velha solidão criar vida dentro de si. Rafa respirava fundo,
ligava um blues, e criava uma alto aceitação enquanto observava os próprios
traços no retrovisor.
O
trânsito pareceu enlouquecer nesse dia. Andava um metro e parava por seis
minutos. Foi então que parou ao lado de um carro. Os olhares foram trocados
instantaneamente. A diferença entre eles era apenas uma, a solidão dele já
reconhecia aqueles traços. E assim nasceu alguma coisa nova, inquieta também,
mas que completou o vazio antes daquelas horas até que o sono levasse ambos.
O
rapaz do carro ao lado teve tempo suficiente para pensar num plano antes que o
sinal abrisse e os carros se desencontrassem. Inclinado, olhou para a Rafa com
demora de poucos segundos. Ela segurava a direção e batia as unhas vermelhas
enquanto esperava impaciente. E quem o via percebia a vontade de
teletransportar para o banco em que ocupavam papeis e uma bolsa toda estufada
de cadernos. O sinal abriu e os carros seguiram. Ele seguiu a mesma direção da
Rafa.
Ao
chegar em casa parou em frente ao portão para abrir. Notou que um carro parou
na calçada da frente. Incapaz de reagir, fixou o olhar. A expressão de surpresa
ao ter o olhar de encontro com o dele. Aqueles olhos interromperam qualquer
pensamento que lhe existisse naquele momento, as mãos pareciam inseguras e
trêmulas. Ambos tentavam decifrar dentro de si aquilo que realmente estavam
sentindo.
(Continua ...)
“Estou infinita e limitada,
Quero minha poesia inteira”
Quero minha poesia inteira”
(Sonia
Schmorantz)
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