A conformação


Lavínia morta, com o corpo deitado sobre o caixão. Ao lado uma mesa marrom escura, velas acesas, flores enchendo o ar com aquele cheiro de adeus. Uma chuva intensa caia lá fora, balançando todas as folhas, como se quisesse mostrar a fúria que havia no coração dele, como se aquilo pudesse suavizar tamanha tristeza que se passava por ali.

Murilo contorcera todo o corpo no sofá. A mãe o mandara levantar, mexer o corpo, ao menos mudar de posição. A perna já estava começando a ficar dormente, o que o deixara em estado de espera, porque sempre sentia como se agulhas fossem penetrando na perna, finas, e de extensão grande. Ele sabia que nunca mais veria o sorriso da Lavínia, ele tinha certeza disso. E como seguir em frente? Como faria pra encarar os dias que seguiam um após o outro sem ouvir o riso, ver as covinhas serem formados a cada palavra boba que ele era capaz de dizer. Como seria? Os olhos pareciam nuvens de tempestades. Mas ele segurava, tentava, lembrando algumas das palavras dela “Você não precisa se preocupar, vou estar com você até quando achar que eu não estou”.

Olhou pra mãe que o observava em tom preocupado. E perguntou:
- Mãe, como vai ser? Me diz?! Quem vai estar comigo quando eu não tiver mais ninguém ao meu lado? Quem vai rir das besteiras que digo? Com quem vou dividir o brigadeiro que só dividia com ela? Quem mãe?

As lágrimas dessa vez foram involuntárias, caiam uma após outra. Eram quentes, colavam no rosto até cair completamente pelo queixo, pingando  no travesseiro que ele apoiava o rosto. Mas não conseguia saber se chorava por ela ou por ele mesmo, por não tê-la. Sentia-se um quase nada, pequeno demais diante dos acontecimentos, tinha o corpo trêmulo, mas não de medo, era de tristeza, daquelas finas, profundas, e que parecem não ter cura. Baixou novamente a cabeça, colocou a mão esquerda apoiada no braço direito, cravando as unhas, fechou os olhos. De repente, ouviu alguns passos, levantou os olhos, prestou atenção para a silhueta que se formava na porta. Era Ávila, com seus cabelos dourados, com rosas murchas nas mãos. Aproximou dele com firmeza. Por uma espécie de relampejo, imaginou que as palavras que sairiam da boca dela o fossem machucar mais que a perda. No entanto, ela simplesmente deixou que transcorressem:
- Ei eii, preguiçoso ein, chega de ser folgado. É hora de levantar.

Murilo escondeu o rosto de vergonha, esqueceu da perna dormente, da dor, esqueceu de tudo. Apenas disse:
- Vá pra lá, me deixa.

Ela apenas sentou no sofá ao lado dele, afastou o lençol, deu um beijo na testa. E então, ele se sentiu abraçado por uma onda de pensamentos que queriam sair dele:
- Sabe, dói muito aqui.
- Eu sei.
-Não é raiva do destino, ou de nada. É só uma tristeza misturada com saudade, que parece agulha no coração. Como se meu coração estivesse morrendo.

Ergueu os olhos, ficou olhando para ela. Depois voltou a se encolher, colocando a cabeça no colo da Ávila.

- Deita menino, fica aqui quietinho, que talvez a dor passe. Eu sei que está doendo, em mim também está, mas o que se há pra fazer é continuar. Depois que a gente perde alguém que cuidou, que foi presente, a gente sofre mesmo.

Murilo fechou os olhos, sentindo a mão dela entre os cabelos bagunçados dele. Ainda de olhos fechados perguntou:
- Porque você se importa tanto?
- Porque você era importante pra ela.
- Mas porque?
- Essa resposta quem sabes é você, ninguém mais conhece a importância que se tem pra outro além de nós e do outro a quem cativamos.
- Hum.

Nessa pequena conversa o cansaço o fez dormir, um sono profundo. Como se ali estivesse a presença da Lavínia, de alguma forma. 

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