Entre as paredes do quarto


Passado os dias, tudo ainda escuro, a vida parecia ser nada. Murilo mexia todo o corpo, e volta e meia parecia percorrer toda a cama, perna pra baixo, cabeça pro lado, e nenhuma posição o fazia acomodar-se. Deixava o corpo modelar-se, na ponta das mãos os dedos se espalhavam pela extensão do lençol, suadas, e vazias da Lavínia. Passava as mãos nervosamente sobre o rosto, sentindo os olhos não obedecerem ao cansaço que o consumia.

Queria ouvir a voz dela, mas o silêncio transfigurava sua ausência muda. Por esforços de tentar descansar, por mais que os braços se atropelassem pra alcançar o vazio deixado, entre as cobertas não havia posição pra diminuir o vazio. Suava frio. As lembranças eram fortes, eram sólidas demais pra serem esquecidas, mas moles demais para que pudesse segura-las. Ainda podia sentir as horas voltar como uma fita de filme antigo; o aroma quente, frio, ora seca, ora úmida. As gotículas da chuva pareciam tocar novamente a pele dele, e na pele da Lavínia, aos poucos, ele passava a ponta dos dedos destruindo uma a uma.

Levantou o corpo fraco, e saiu pela casa a pensar. “Medo? Isso não!” Sacudia a cabeça involuntariamente, percebendo, estava com medo por não saber se um dia poderia voltar a sentir a vida de Lavínia em suas mãos. As lágrimas caiam novamente, face, pescoço, peito e molhavam a camisa. Fluida, estava nele colada, e faziam das lágrimas a parte dele que havia morrido. Novamente o pensamento gritava “medo, isso não, eu não posso sentir medo. Não posso me culpar, mesmo que eu seja culpado por não ter vivido mais perto.” Tentou acreditar que era tudo um pesadelo, um sonho do qual queria não lembrar, porque estava doendo tanto. Parecia que as paredes da casa sabiam segredos e o indagavam do porque ter demorado tanto. Porém ele não sabia uma resposta de ponta de língua, ele estava a se esconder alí naquele lugar. Não havia dias. Não havia um depois de amanhã. Havia somente as lembranças no qual as paredes pareciam ditar “você poderia ter feito mais”. E para ele, talvez, não existisse mais nada além do escuro pairando sobre a cabeça.
A cabeça dolorida, parecia que tinha batido de frente com uma parede de aço. Os pensamentos atropelados pareciam criar suposições, mas nada se firmava. Tudo modificava. Por algum motivo, os pensamentos tentavam ficar menos claros, era sempre o “talvez”. Na boca surgia a negação, mas sempre acompanhado de um “se” e um “talvez”. Apenas sabia que tudo parecia morrer, sendo o relógio o pontuador da musica fúnebre que a vida dele parecia agarrar. Voltou para o quarto, prostrou o corpo novamente na cama. E sozinho, num esforço, tentou falar as palavras guardadas. Mas também se sentia morto, havia deixado a parte mais incoerente e sóbria dele ir com ela. O querer havia se dissipado. Dessa vez o silêncio era tamanho espesso quanto uma parede impenetrável. E ele sabia que não haveria passo que o levasse de volta pra ela, só a morte. E isso não era garantia de vê-la, de tê-la. Pensou em tentar, mas sabia que entregar a própria vida não faria voltar a viver a mulher que mais amara a vida inteira.

Sem reação, sentia ser sufocado por uma realidade cruel. Murilo voltou a passar a mão nos cabelos, mas dessa vez já não sentia aquela agonia corroer, quase respirando lentamente, sentindo que não seria assim a melhor forma de reencontrar o elo que havia se perdido. Pensou em levantar, mas algo o deixou preso. As mãos e pernas pareciam pesar toneladas, os pulsos pareciam grudar-se cada vez mais na cama. Sentia-se um universo em expansão e logo após parecia diminuir a uma dimensão ínfima.

Voltou-se para a janela, olhou a mesma árvore que a Lavínia havia se encostado furiosa com ele. Veio aquele medo lento, que quase o enlouquecia. No peito, sentiu, o coração apertado e na garganta uma melodia de tristeza em forma de grito. Então, implorava:” não, nãooo, nãooooooo!!!” Como um condenado. Sem diligência. Já sabia que esse pedido nunca seria atendido. Então, mergulhara no próprio silêncio, no fundo do poço das poucas ilusões que ele já deixava de achar importante.

Encolhido, choroso. Que sabe naquele pequeno espaço da cama, sem face, deixava de ser algo inexistente. A mente que tentava fugir da lucidez excluía a presença da realidade. Então, de olhos abertos, escondeu os sentimentos. Não podia ficar assim, pois já sabia que dor de perda não se tem contentamento que preencha. As paredes pareceram compadecer do sofrimento e já não criavam indagações. Não sabia como a Lavínia era parte dele, só entendia que era essência de tudo o que ele sabia existir. 

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