“Só nós dois, sós os dois, sóis os dois.”

“Você tem me ganhado nos detalhes e aposto que nem desconfia.


Memórias. É um tanto assustador lembrar por reflexos de detalhes. Eu ainda lembro, o celular tocou algumas vezes, e eu não consegui falar mesmo depois de já ter ouvido aquela voz. Me mantive quieto, sentado, depois andando no meio do quarto numa aflição. Quando as perguntas eram impossíveis de desviar, eu tentava pensar que do outro lado alguém estava sentindo a mesma sensação agoniante e lenta, um desespero agradável.

Depois de várias ligações, ainda havia o mesmo desespero, ainda era agradável. Porém talvez aquele sentimento tivesse tomado a profundidade do acostumar.

- Amor? – Aquela velha voz conhecida. – Oii? Amor, fala alguma coisa?
- Oi. – Ele disse.
- Pensei que não ia falar. Você está bem?
Cansado, sentou. Passou uma das mãos cortando o cabelo preto e liso em cinco partes. Lembrou da gastrite que o deixava louco de dor.

- Oii? Dormiu? Tá aí?
- Oi. – Ele disse.
- Então responde?
- Eu não tenho feito nada. Nada de importante. Meu tempo anda quieto, arrastado. – retirou a mão do cabelo e apoiou no joelho. – Agora, acho que é melhor desligar?!
- Não entendi o que você falou. Fala menos enrolado.
- Só desligar.
- O que é que você vai desligar?
- Esquece, não é nada. Mas me fala o que tens feito?

Do outro lado da linha surgiu um silêncio. Um suspiro. Outro silêncio.

- O que tá rolando? – Perguntou inquieto.
- Nada. Nada.
- Eu falei alguma coisa errada?
- Não. – A voz ficou mais aguda. – Não é nada demais.

Por um momento, breve, o cimento do chão, a luz do quarto, pareceu complementar o próprio medo. Os dedos dele contraíram ainda presos ao joelho, enquanto os olhos pareceram aumentar de tamanho quando a voz recomeçou a falar.

- Tem coisas que eu prefiro não dizer.
- Tudo bem, então, vamos falar do frio que faz aí?

A voz ficou forte.

- Aqui é um inferno de quente.
- E não faz menos calor em nenhuma época do ano?
- Não faz menos de 29º. – Com a voz doce e baixa emitiu um som que ele não entendeu.
- Tá, estou chato hoje?
- Como se não fosse sempre.
- Então se eu sou tão chato, porque você ainda me procura?

Aquela repetição entre silêncio curto, suspiro e mais silêncio voltou a pairar na ligação.

- Porque eu senti vontade de falar contigo.
- Porque?
- Talvez porque eu meio que goste de sua chatice.  

Ele deu de ombros. Perdeu um pouco o foco dos olhos e sorriu.

- Amor, tá aí ainda?
- Estou, desculpa.
- Acho que é melhor desligar mesmo como você falou.
- Não, espera só mais um pouco?
- Porque isso agora?
- Não, é só que eu não queria desligar.
- Então porque pediu isso logo quando atendeu?
- Porque eu sabia onde a conversa ia terminar. Eu no fundo queria escapar das suas palavras, mas não queria.
- Ah não entendi mais nada, queria escapar da minha voz, mas não queria?
- É que eu não estou preparado pra ouvir tuas palavras, mas as quero. Isso me gera medo, aflição. Então, quero fugir, mas não vou a lugar algum.
- Tudo bem. – Ela sorriu delicadamente. – Eu não vou a lugar algum. Mas preciso mesmo desligar.
- É, também acho.
- Boa noite anjo.
- Boa noite Darling.


Os telefones desligados. O quarto continuou misturado ao medo. E ele continuou sentado, com a mão ainda segurando o joelho. E o vento, loucamente, conversando com as paredes do quarto, amaciando a saudade, amontoando a solidão outra vez. 

“Você se foi e eu afundei numa melancolia de dar gosto.”

Comentários

  1. Ótimo conto! Deu pra pegar o contexto de forma fácil e harmoniosa! Parabéns!
    Um abraço!
    Um guarda-livros

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    Respostas
    1. Fico feliz pelo comentário. Acho que o conto conseguiu correr sem interrupções bruscas. ^^

      Abraço.

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